A Matança do Porco
Vai morrendo o Outono em gélidos dias de Dezembro.
A praga aldeã das moscas foi definitivamente enxotada pelos sintomas
indesmentíveis da neve próxima.
Já fervilha o vinho no tonel - "parece um relógio a trabalhar", diz o Zé
Quintelo de orelhas encostadas ao pipo.
Os castanheiros despiram-se das folhas amarelecidas. Um tapete verde vai
alastrando pelos campos, enquanto a faina agrícola amaina. |
De longe, começam a chegar emigrantes.
Já nos longos meses, o porco veio passar a Primavera ao lar.
E,
nestes tempos em que tanto se fala de ecologia, parece-nos que o
porco é a máquina perfeita: transforma os vegetais em carne;
alimenta-se do supérfluo, dos acréscimos da família; produz o
estrume necessário aos campos do nosso agricultor; e depois de
morto, serve de talho para o ano inteiro.
Quando se acabam as colheitas - abóboras, beterrabas, nabos, fruta -
e a terra parece descansar, sob a neve ou a |
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geada, para o novo ciclo de produção - é a hora de morrer. |
Jejuou a noite anterior para "limpar". Chegam os convidados, bem
cedo, a mesa veste-se gulosamente. Para o mata-bicho não falta o
bagaço. Mas na mesa ainda estão defuntos do ano anterior: presunto,
salpicão, chouriça. Assim esconjurado o frio e preparados para o
crime, avança-se para o cortelho. À frente, o homem da faca, de leia
na mão, tenta aprisioná-lo pelo focinho.
Com mais ou menos dificuldade, ei-lo amarrado ao leito da morte.
Quatro homens seguram-no, cada um com a sua pata, comandados pelo
matador. Afastados os que têm pena, "não vá ele encolher o sangue",
chegada a mulher com alguidar, aí vai solenemente a picada mortal.
Balança-se o porco na luta com a morte. . |
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Segura-se cada um como pode, neste longo minuto de agonia. Em jorros de
dor o animal atroa os ares. O alguidar, em mãos destemidas, vai-se
enchendo. A um canto ferve a água nos potes. |
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Mais ao lado, a palha vai sendo escolhida para lumieiras que
tostarão a pele já morta. Hoje, o maçarico a gás vai substituindo a
palha.
Despojado das unhas e queimado o porco de um lado, é hora de o
virar.
Antes, porém, há o intervalo deste filme para beber um copo de vinho
acompanhado de pedaços de sangue, entretanto já cozido.
E a tarefa vai continuando até não restar um pelo às facas afiadas.
Escaldada a língua e a orelheira, calça-se no chambaril e pendura-se
numa boa trave.
Aí será " operado" pelo matador que o alivia da primeira carne para
a mesa. As tripas são cuidadosamente apartadas para um tabuleiro e,
de tarde, serão lavadas na ribeira.
Na cozinha está preparado o manjar. Na panela vão derretendo os
torresmos. |
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O sarrabulho só espera a água a ferver. Esta iguaria é preparada com pão
cortado em pequenas fatias a que se junta o sangue cozido. Leva também
açúcar ou, noutras terras alho. |
Sobre todo este sólido cai água a ferver. E aí está o famoso
sarrabulho que serve de sobremesa e que, em algumas ideias, chega a
dor o nome a este dia festivo rural. - a festa do sarrabulho.
Um ou dois dias depois, desfaz-se o porco. Meticulosamente cada peça
dá o seu melhor para a salgadeira ou para o fumeiro.
Desde os untos
à bexiga, nada é estragado. Neste dia, está aínda vivo o hábito de
"dar o prato". Consiste em levar aos lares mais chegados, um prato
com carne, sangue, costeleta, fígado... para que todos provem da
matança. |
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É dispendioso, pensa-se. Mas o certo é que nesta altura havia muita
coisa que era excessiva. |
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Com este gesto - dar sete ou oito pratos - ganha-se carne durante sete
ou oito semanas, pois que, cada vez que uma dessas
pessoas mata, vem trazer, fresquinha, a carne do seu porco,
retribuindo o prato.
Salutar e inteligente este hábito comunitário com origem em tempos
imemoráveis.
Depois de algumas noite de "enchimento", aí temos cada casa rural
apetrechada com condimento delicioso para o ano inteiro:
farinheiras, moiras de sangue ou de cebola, chouriças do buchada ou
de carne propriamente dita, os salpicões deliciosos.
Alguns comem-se em festividades marcadas: o moiro de sangue -
Domingo magro; o salpicão da barbelada - domingo gordo; o salpicão
da língua - dia de entrudo.
Suculenta e prolongada esta festa aldeã |
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